Se eu vou ser criticada para dentro do partido político que componho? Certamente. Mas os olhares de questionamento sobre o que eu sou, todas as vezes que eu entro em um espaço de organização política, usando um vestido curto ou uma roupa justa, me são uma crítica muito mais dura, muito mais injusta, muito mais cruel.
Este ano eu completei 10 anos de filiação ao Partido dos Trabalhadores e das Trabalhadoras. Minha mãe preencheu minha ficha de filiação. A mulher que me deu exemplos a vida inteira, que nunca me impôs nada. Minha maior referência de luta feminista. E nós nem sabíamos disso 10 anos atrás.
Aos 20 anos eu fui trabalhar no prédio da Prefeitura da Cidade de Recife. Inicialmente, eu ficaria na função onde comecei, por apenas dois meses e após esse período, eu seria transferida para algum cargo administrativo. Nunca aconteceu. Eu passei 15 meses como auxiliar de serviços gerais. Na minha ficha cadastral tinha escrito: auxiliar de higiene. Eu recolhia o lixo, varria, limpava os móveis, passava pano no chão, lavava os banheiros, recolhia ‘bitucas’ de cigarro em meio aos escarros na área de fumantes. Vocês não fazem ideia de como as pessoas podem ser sujas. E fazer sujeiras. Para além do lixo. Para além do espaço físico.
70 % dos homens deste espaço, me olhavam como se fossem me deitar no chão a qualquer momento. Eu vivia acoada, assustada, com medo. Paralelo a isso, 85 % das mulheres que trabalhavam comigo, a equipe da limpeza, me tinham como rival e garantiam aos 4 ventos: “ela vai subir dormindo com algum deles.” Sim, eles também acreditavam nisso. Me davam presentes, me levavam café, me convidavam para jantar, almoçar… as mulheres me maltratavam por isso. Prejudicavam meu trabalho. Fiquei uma semana lavando o mesmo chão, depois de uma colega de trabalho ter colocado vaselina no meu detergente. Como eu já disse acima, não mudei de função. Pedi demissão.
Um desses homens vai merecer aqui uma atenção “especial.” As salas reservadas às funcionárias responsáveis pela limpeza do prédio, eram cubiculos apertados, em sua grande maioria, banheiros desativados ao público e ativos apenas ao nosso uso. Lá usávamos nosso período de descanso e fazíamos nossas refeições. Esse homem ia na porta todos os dias. Nunca batia. Nunca batia. Me fazia convites, lambia os lábios enquanto falava comigo, levantava meu rosto pelo queixo, quando eu o baixava, com vergonha. Durante todo o tempo que eu suportei isso, foi tudo o que ele tocou em mim: queixo. E me feriu.
Então, longos anos depois, a candidata à reeleição, Presidenta Dilma, junto ao ex Presidente Lula, vem até Recife fazer uma caminhada. No meio da multidão, eu revejo este homem. Jovem homem. Aperto, muita gente, muito mais gente, ele para atrás de mim que estava sufocada, sendo arrastada pela multidão e começa a passar a mão em mim, enquanto falava no meu ouvido: “gostosa, vira mais pra cá, eita coisa boa...” Eu não tinha como me defender. Nem gritar. Nem esboçar reação. Estava extremamente assustada. De novo.
Este homem não faz a mínima ideia de quem eu sou e do que ele provocou. Em primeiro lugar, alguns questionamentos: que formação estamos proporcionando aos nossos homens militantes, quando à luta das mulheres? Que tipo de organização político partidária somos, se em nossos fóruns e nossas teses, reafirmamos nossos compromissos com a luta em nome do empoderamento e da autonomia das mulheres e expomos uma companheira, a transformando em secundária perante os debates de auto análise?
É inadmissível que uma mulher tenha que passar por tantas dores dentro de uma sociedade machista, patriarcal, branca, hétero, burguesa e que na sua tentativa de construir um espaço que deveria ser voltado à encorajemento, ela se sinta também impotente, constrangida, insegura. Para além dos nossos gritos (conversas de bar, textos, artigos, desabafos), os diretórios e instâncias deliberativas partidárias, precisam antes de tudo, admitir que a violência existe, pra que depois, possamos encaminhar medidas de formação e conscientização dos “nossos homens.” Aqueles que nos chamam de companheira, mas que nos apostam em rodas de cerveja.
Curemos nossas feridas na verdade, no jogo aberto, na honestidade, no olho no olho e acima de tudo, no respeito às dores que não sentimos e pelas quais temos que assumir responsabilidades. Somos o partido que mudou a realidade de um povo, que incluiu, que ouviu, que se fez ouvir. Não vamos agora, esquecer de um grupo de pessoas, apenas por não queremos olhar para nosso próprio umbigo.